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Devo é uma das bandas mais inovadoras, autênticas, inteligentes e fascinantes a surgirem da new wave e do pós-punk que irrompeu dos dois lados do Atlântico, no final dos anos 70 (muito embora sua origem seja traçada cinco anos antes da explosão punk). Sua formação clássica (1976-1986) é composta de Mark Mothersbaugh (vocal, sintetizadores, teclados e guitarra), o "estrategista-chefe" Jerry Casale (vocal, baixo e sintetizadores), Robert Mothersbaugh, irmão mais novo de Mark (guitarra, mais conhecido como Bob Mothersbaugh ou Bob #1), Robert Casale, irmão mais novo de Jerry (guitarra e teclados, mais conhecido como Bob Casale ou Bob #2) e Alan Myers (bateria).
De sensação cult no final dos anos oitenta até seu status de ícone pop dos anos oitenta, este grupo estadunidense foi um dos primeiros a fundir música com a linguagem audiovisual de seus elaborados videoclipes, muitos dos quais precederam o nascimento da MTV em 1980. Mais: Devo foi uma das primeiras bandas, fora do circuito musical kraut-rock/experimental/progressivo, a assimilar a eletrônica como um elemento estrutural de suas canções e integrá-las a um contexto pop de canções curtas e coesas. Ao lado de outros pioneiros como Ultravox, Human League e Gary Numan, esta banda foi a maior responsável pela predominância do synth pop do início aos meados da década de 80, familiarizando a sensibilidade do mainstream com os rígidos tempos e as exóticas texturas da eletrônica.
Esta banda se formou na pequenina cidade de Akron (Ohio, EUA), em... bem, digamos que ela se formou quando o sonho acabou. Jerry e Mark eram colegas da faculdade de artes da universidade de Ken State. Em pleno crepúsculo dos anos 60, ambos eram hippies e encontravam-se mobilizados ao redor dos piquetes estudantis pelo fim da Guerra do Vietnã. Em 1970, Jerry testemunhou um brutal ato de repressão da Guarda Nacional norte-americana: uma manifestação no campus de Kent State contra a ocupação yankee no Camboja terminou com quatro estudantes mortos - dentre os quais dois amigos de Jerry - e um clima de paranóia, já que a universidade foi fechada e a ela imposta um estado de sítio que durou por dias a fio.
O evento teve um impacto considerável em Jerry. Amargando os resquícios da ressaca de 68, Jerry e seu colega Bob Lewis formularam a teoria da De-Evolution (em português, involução), que defendia que a humanidade, contrariando a noção linear de progresso, estaria retrocedendo como espécie, e não evoluindo. A concepção estava impregnada pela leitura do romance de ficção científica The Beggining Was The End: How Knowledge Can Be Eaten?, de Oscar Kiss Maerth, a qual defende que a espécie humana derivava de uma classe de grandes primatas canibais, os quais ingeriam o cérebro de seus semelhantes para proporcionar-lhes maior poder sexual.
Da mesma forma, Jerry, Lewis e Mark passaram a talhar formas de poema, música, performance e vídeo que espelhassem sua visão de mundo: seres humanos marchando como clones sem individualidade em um ambiente equipado e moldado pela mais sofisticada tecnologia, porém vivido por homens regulados por uma mentalidade rígida, estreita e conformista. Seu comportamento autoritário e auto-destrutivo, estimulado pelo consumismo neurótico-compulsivo e pelos latentes e frustrados fetiches sexuais, levariam o planeta ao colapso social e à exaustão de seus recursos.
O combo adotou a alcunha de Devo - abreviação de De-Evolution - e combinou várias formas de expressão para reforçar sua mensagem: a música produzida pela banda se apoiava em um forte experimentalismo eletrônico, operado com a ajuda de sintetizadores, alguns montados artesanalmente com o auxílio de utensílios domésticos e outros gadgets eletrônicos. A base sustentava melodias ora atonais, de ritmo descompassado; ora deliberadamente infantis e repetitivas.
Os próprios membros da banda se vestiam uniformemente, com trajes plásticos de cores hipersaturadas portando o nome Devo; como uma logomarca, enquanto cambaleavam no palco em rígidas coreografias. Com freqüência, Mark Mothersbaugh se apresentava como seu alter-ego Booji-Boy (pronuncia-se Búgui), ao vestir uma máscara de uma criança de bochechas gordas e vermelhas. Um homem adulto vestido de bebê representava, de forma mordaz, a infantilidade da sociedade norte-americana embevecida pelo consumo e o imediatismo.
O ano de 1972 marca a primeira apresentação da banda, ainda sob o nome Sextet Devo, integrando as atrações do festival de artes de Kent State. A formação, que tomou vida apenas para este evento, incluía Jerry Casale no baixo, Bob #2 e Bob Lewis nas guitarras, Rod Reisman na bateria, Mark Mothersbaugh no sintetizador e Fred Webber nos vocais. Nos anos subseqüentes, Mark, em companhia de Jerry e seus irmãos Bob e Jim (que operava um kit de bateria eletrônica montado por ele mesmo), passava o tempo no porão de sua casa, ocupado em compor, gravar e fazer a banda soar mais involuída o possível - período gestacional que seria posteriormente documentado nas coletâneas Hardcore Devo (volumes 1 e 2), lançadas nos anos 90.
Regularmente, o conjunto subia ao palco de alguns bares da redondeza, muitas vezes apresentando-se, antes de tocarem, como uma banda cover de hard-rock. Presentes que esperavam canções de Foghat ou Allman Brothers sentiam-se provocados, a ponto de atirarem garrafas e ameaçarem invadir o palco para agredi-los. Jerry referia-se ao peculiar som que o grupo performava como chinese computer rock 'n' roll: algo que remetia ao blues vanguardeiro de Captain Beefheart, ao arrojado experimentalismo eletrônico do Roxy Music (na fase em que Brian Eno fazia-se presente) e à intertextualidade e performance multimidiática dos excêntricos The Residents - muito embora Mark saliente que a maior inspiração da banda era "o importante som de coisas desabando".
O primeiro vislumbre da aclamação ocorreu em 1976. O curta-metragem The Beggining Was The End: The Truth About De-Evolution venceu o festival de cinema de Ann Arbor e impressionou profundamente dois ilustres membros da audiência: Iggy Pop e David Bowie. Foi Bowie quem, atuando como um mecenas, asseguraria futuramente um contrato da banda com a Warner Bros. e ainda convocaria os serviços do consagrado produtor Brian Eno para desenvolver com a banda o seu álbum de estréia.
Dois singles foram lançados pelo seu próprio selo independente, Booji-Boy: em 1976, o EP portando a canção Mongoloid, e, em 1977, outro compacto portando uma versão desconstruída do maior hit dos Rolling Stones, Satisfaction, ambos gravados com a presença do baterista Alan Myers. No ano seguinte, o Devo gravou uma compilação com seis músicas para a gravadora britânica Be Stiff, intitulada (oportunamente) com o nome do selo.
O album de estréia, Q: Are We Not Men? A: We Are Devo!, foi gravado em uma fazenda nas proximidades da cidade alemã de Cologne e saiu nas lojas em agosto de 1978. O LP foi bem sucedido em sua missão de chamar as atenções do público para a banda, na esteira da apresentação maníaca dos spud-boys no Saturday Night Live - sem contar no frenético e original cover de Satisfaction, acompanhado de um criativo videoclipe, e que rapidamente invadiu pistas de dança na vida noturna britânica.
Ao lançar a seqüência de sua estréia, Duty Now For The Future (1979), Devo já havia cindido as opiniões nos círculos da cultura pop; enquanto o nome da banda ascendia ao lado de Talking Heads, The B-52's e Pere Ubu como os expoentes do "novo rock" americano, a revista Rolling Stone os desdenhava como um bando de "fascistas". O cenário estava montado para que, no alvorecer dos anos 80, todos os holofotes estivessem voltados aos garotos de Akron.
O terceiro álbum, Freedom of Choice, foi o trabalho certo na época certa. Produzido por Robert Margouleff, que no currículo ostentava sua colaboração com Stevie Wonder, Freedom of Choice galgou as paradas da Billboard em 1980 até a 22ª posição. No ano de estréia da MTV, três dos videoclipes concebidos dentre o novo repertório ganharam enorme exposição na programação da emissora - especialmente aquele criado para o maior hit da carreira do Devo, Whip It, cujo single vendeu um milhão de cópias. O vídeo mencionava de forma (não tão) velada práticas de sado-masoquismo, enquanto a música, tratada com esmero por Margouleff, trazia uma insistente e digitalizada versão escrachada dos beats das disco.
De volta ao estúdio, a banda resolveu investir na atenção pública capitalizada para produzir aquela que seria a obra mais comprometida com o idealismo de início de carreira. New Traditionalists veio no final de 1981; embora musicalmente muito familiar a seu antecessor, o álbum decepcionou aqueles que apostavam na vertente humorística e nonsense da banda e, muito pelo contrário, depararam com a estética provocativa desse período: Jerry, em entrevista à TV americana transmitida ao vivo, alegou placidamente que apenas estava se "adaptando ao estado corporativo feudal em que vivemos", enquanto penteava sua peruca plástica, referência direta ao penteado lambido do ex-presidente John F. Kennedy.
Sob grande pressão da Warner Bros., que exigia mais sucessos no calibre de Whip It, Devo deu sua entrada no ano de 1982 com seu quinto álbum, Oh, No! It's Devo. Embora contasse com um punhado de canções memoráveis, como Peek-a-Boo e That's Good, este amaldiçoado LP sofreu alguns abalos que mancharam sua credibilidade: a decisão de incluir um poema de John Hinckley Jr., preso por tentar assassinar o presidente americano Ronald Reagan, gerou muita controvérsia. Sua turnê também não rende boas recordações, já que todo o equipamento de projeção de imagens 3-D, feito para incrementar os shows, foi vítima de falhas técnicas. Também nesta época, o ex-companheiro Bob Lewis conseguiu vencer a banda na justiça e processou-os por plágio intelectual.
Dois anos mais tarde, o álbum Shout, um excerto insípido de tecnopop genérico, foi recebido com indiferença por público e crítica. Reconhecido como o trabalho mais fraco da banda, foi o último álbum a ser lançado pela Warner Bros., que despejou o grupo. Alan Myers, cansado de ser ofuscado pela bateria eletrônica, demitiu-se. Quatro anos se passaram em hiato, até que Devo, ostentando David Kendrick (ex-Gleaming Spires) com as baquetas, assinasse com outra gravadora, a Enigma, e lançasse seus dois últimos trabalhos: Total Devo (1988) e Smooth Noodle Maps (1990).
Jerry e Mark queixavam-se da gestão da Enigma. Segundo eles, a gravadora impôs muitos entraves ao processo criativo, interferindo na direção dos videoclipes e oferecendo um orçamento baixo para as ambições do grupo. Mais ainda, acusavam a Enigma de gerir as estratégias de promoção e divulgação com extrema incompetência, relegando o grupo ao limbo. Estas foram razões capitais para a banda pedir o boné, em 1991.
É importante considerar, acrescente-se, que Mark Mothersbaugh já se encontrava, desde o final dos anos 80, envolvido com sua empresa de publicidade e jingles Mutato Muzika. Juntamente com Bob #1 e Bob #2, compôs trilha sonoras para a série Pee-Wee's Playhouse, e seguiu na subseqüente década trabalhando em produções como Os Anjinhos (Rugrats) e Mundo de Beakman, bem como nos filmes The Excentric Tenembaums e Life Acquactic With Steve Zissou. Jerry Casale, principal cabeça por trás da direção e concepção dos videoclips do Devo, deu continuidade à sua atividade como produtor, fornecendo seus serviços a Foo Fighters, Silverchair, Soundgarden e Rush.
A vida pós-Devo ainda compreende duas bandas: Mark e os dois Bobs montaram uma banda de surf-rock chamada "The Wipeouters", que era o nome de uma banda que os três formaram enquanto adolescentes, em 1966. O álbum de estréia, P'Twaaang!, foi lançado em 2001. Já Jerry, em 2006, reuniu seus ex-companheiros para formar o grupo de blues "Jerry Jihad and The Evildoers", cujo álbum de estréia, Mine is Not a Holy War, saiu nas lojas no mesmo ano.
Desde 1996, ano em que se apresentaram no festival Lolapalooza, o conjunto - portando na formação o baterista Josh Freese - reuniu seu núcleo central de quatro membros e faz excursões esporádicas. Em julho de 2007, ao serem confirmados no festival Sonár, em Barcelona, a banda deflagrou sua primeira turnê internacional em mais de quinze anos.
Durante toda sua trajetória, os cinco devóides possuíam um projeto paralelo: "Dove, The Band of Love", um anagrama a partir do nome original, era um grupo de rock gospel-cristão que já abriu vários shows para o Devo! Subindo ao palco com macacões de cor cáqui e bonés translúcidos, em alusão à obsessão pela boa forma e por práticas como jogging, o objetivo era criticar, de forma bem-humorada, a retomada do fundamentalismo religioso nos Estados Unidos, durante a era Reagan.
Os famosos chapéus vermelhos usados durante a promoção de Freedom of Choice são descritos quase sempre como "flowerpots" (vasos de flor). Entretanto, o intuito original era de que o singular adorno fosse uma referência plástica e irônica às majestosas pirâmides astecas. Jerry, talvez exausto com especulações em torno do significado do bendito chapéu, inventou a explicação de que era simplesmente uma abóbada energética, ou "energy dome", cuja função era a de reciclar a energia vital que se dissipa pelo osso occipital. Por isso, os membros do Devo deveriam ser reconhecidos como "conservacionistas". Então tá, né?
Antes do primeiro álbum ser lançado, o diretor da Virgin Records, Richard Branson, convidou Mark Mothersbaugh e Bob #2 para uma viagem à Kingston, capital da Jamaica. Motivo? Chapar de maconha e persuadir os dois a aceitarem Johnny Rotten, que se refugiou em Kingston após romper os laços com os Sex Pistols, como o novo vocalista do Devo. Como conta Mark no livro Rip It Up And Start Again, de Simon Reynolds, "Ele disse: 'o Johhny está na sala ao lado. Alguns jornalistas da NME e da Melody Maker estão aqui. É a hora perfeita para ir à praia, tirar umas fotos e anunciar que ele se juntou ao Devo. O que vocês acham?'". Mesmo com o cérebro torcido, Mark deu a resposta eeeeee...xata!
Brian Eno, como produtor, manteve parcerias duradouras com muitos artistas, como David Bowie, Talking Heads, Robert Fripp e U2. Com os Spud Boys, no entanto, a parceria durou apenas um álbum. Ao invés de retratar uma banda incorporando as marcas registradas de Brian Eno, a banda entrou em atrito com seu produtor e resistiu à sua influência. Diz Mark: "Em retrospecto, fomos demasiadamente resistentes às idéias de Eno. Ele inventou partes de sintetizador e sons bem atmosféricos para quase todas as faixas, mas nós as usamos apenas em três ou quatro músicas, como o looping de macacos berrantes em Jocko Homo".
Em seus primeiros shows, o conjunto se especializou em irritar platéias de fãs descolados de arena-rock/boogie-rock, nos anos 70. Em um show de abertura para o Sun Ra, em 1975, a banda tocou o bordão "Are We Not Men? We Are Devo!", contida no meio de Jocko Homo, por vinte minutos. Um DJ da estação de rádio que promovia o concerto suplicou para que eles parassem de tocar - o que aconteceu apenas quando a banda foi paga para se retirar!
A batata é um dos maiores símbolos da De-evolução. Tal conotação é retirada do significado da gíria "potato head", que nos Estados Unidos designa pessoa de inteligência limítrofe. Mais uma vez, Jerry contraria as expectativas ao defender que as batatas são guardiãs da reserva mais concentrada de energia do planeta.
Como todos nós bem sabemos, ninguém vive de vento. Um jovem e durango Jerry, nos primórdios da banda, tinha que arranjar uns trocados para financiar as gravações e a produção de Devo. Além dos shows, o baixista obtinha renda vendendo sua força de trabalho, nem sempre da melhor forma possível: o futuro estrategista-chefe já trabalhou como projetista de um cinema pornô e conselheiro em uma clínica para reabilitação de viciados!
Como um meio para simbolizar a cooptação da contracultura pela sociedade de consumo e a cultura de massa - mecanismos que desvirtuam a diversidade em caricaturas uni-dimensionais, previsíveis e a-históricas, perpetuando dessa forma a ordem vigente - o conjunto formulou cinco aforismos que compõem o De-Evolutionary Oath (em português, o juramento involucionário):
Devóide, um alerta: se algum fã purista de "classic-rock", daqueles que fazem peregrinação ao túmulo de John Bonham, praguejar contra Devo, seu estilo robótico e seu excêntrico hibridismo eletrônico, esteja devidamente preparado: ponha na roda que ninguém menos do que Neil Young foi um dos maiores fãs dos spud boys. Ex-membro do quarteto de country-rock Crosby, Stills, Nash & Young e um dos maiores ícones da contracultura, o padrinho de Eddie Vedder ficou completamente obcecado com o Devo.
Quando o grupo ainda ganhava moral com o prêmio de Ann Arbor e as declarações entusiásticas de Bowie e Eno, Neil Young também foi tragado pelo fascínio a ponto de convidá-los a participar de seu longa-metragem Human Highway (1977). Nesse filme a banda aparece dando uma canja com a canção Worried Man. O Neil Young concedeu carta branca e total autonomia pro Jerry, que dirige a maioria dos videoclipes, bolar todos os diálogos da cena que os spud boys estrelam. Nela, interpretam operários recolhendo o lixo nuclear de uma usina, enquanto cantam Worried Man.
Aqui você confere toda a discografia da real de-evolution band numa lista compilada por Marcello Colosimo, incluindo álbuns, singles, DVDs, coletâneas e participações em trilhas sonoras.
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